Coluna Esplanada

José Sarney, a despedida

Leandro Mazzini

Contam ilustres moradores que em reunião num luxuoso condomínio na Península, em São Luís (MA) – onde especula-se que deve residir – foi cogitado meio à brinca, meio a sério, o nome do senador José Sarney para síndico em 2015. E unanimemente recusado. A muitos quilômetros da capital, o prefeito aliado de Arame, no interior, resolveu batizar uma avenida de 2 km com o nome do patriarca do conhecido clã político no Estado.

Estes dois episódios locais demonstram como um dos mais longevos mandatários do Brasil, às vésperas de sua aposentadoria, tornou-se amado e odiado Meses atrás, quando especulações de sua retirada rondavam o Congresso, as perspectivas climáticas para o outono brasileiro descreviam curiosamente o momento vivido por seu José Ribamar, nome de batismo: a estação de transição entre o verão e o inverno contou com nevoeiros, mudanças rápidas e temperaturas amenas – tal como José Sarney com sua aposentadoria.

Uma transição sob um nevoeiro vindo de um tempo político de incertezas; uma mudança repentina de projeto de poder decidida durante um período pré-eleitoral brando com o foco do País na Copa do Mundo. Sarney viveu seu outono de março a junho dedicado a esboçar cenários, do alto de sua experiência de 60 anos de mandatos, que o incluíssem numa era da política nacional onde cada vez mais jovens e uma nova sociedade requerem seus lugares nos plenários, gabinetes e palácios.

Em momentos de introspecção, olhou para as conquistas do passado, pensou o futuro e decidiu ficar onde está: descobriu que não há mais lugar para ele. É hora de sair do Poder – embora Sarney tenha deixado claro: o Poder não sairá dele. Contudo, diferentes conjunturas locais nas suas bases do Amapá e do Maranhão, forças políticas regionais surgidas no debate democrático e fortalecidas pelas redes sociais, e uma geração que reivindica faces renovadas no Poder forçaram a escolha do veterano.

Discretamente, o homem que nunca perdeu uma eleição recorreu ao literato que é para traçar uma justificativa à altura de quem já foi rei (ou melhor, presidente, dá no mesmo). Saiu-se por cima pelo menos em nota oficial: é hora de cuidar da família.

Queiram ou não os brasileiros, Sarney continuará a ser o cacique que é, no Maranhão com ou sem governo, e no PMDB e no restante do País. Amado por uns e odiado por muitos – ressalte-se aqui que esse “ódio” é uma rejeição natural contra alguém com essa longevidade política – reverenciado por militantes e políticos ou esculachado por adolescentes e adultos que o veem como um “dinossauro”, referência tão recorrente nas redes sociais. Tornou-se uma figura emblemática.

Deputado, governador, senador, fez de si um homem público aliado de todos os governos e Poderes nessas décadas consecutivas, uma invejável colocação que o colocou sucessivamente em vitrines – e usou isso para manter apadrinhados em várias esferas públicas, desde prefeituras, passando por palácios de governos e tribunais, ministérios e Presidência da República.

Daí a rejeição ao cacique, um misto de inveja dos que não desfilam como ele, aliada ao reclame popular de que Sarney sempre abusou da sorte e do Poder público, com fortes indícios de uso em causa própria. Tornou-se assim, pelo “conjunto da obra”, a maior personificação do paternalismo e do patrimonialismo, tão combatidos por quem luta por amadurecimento político e partidário no Brasil.

Principalmente por isso, nessa não comedida relação de público e privado, há apontamentos aqui e acolá, declaradamente ou à boca pequena, sobre indícios de enriquecimento ilícito da família na aquisição de bens no Maranhão e pelo País, de uma ilha no oceano onde ele se refugia para escrever seus livros, de um suposto castelo em Portugal, sem esquecer de um filho alvo da Polícia Federal e por ter censurado O Estado de S.Paulo, que tem uma página pronta sobre as maracutaias do primogênito em negócios com dinheiro público etc. Ou pelo simples fato de tomar para sua propriedade o Convento das Mercês, em São Luís, para seu memorial e futuro mausoléu.

Obviamente, pelo visto, Sarney fez por onde provocar a inteligência do brasileiro. Difícil prever como será lembrado daqui para a frente. Se pela biografia Sarney, de Cristina Echeverria, na qual disseca a figura com seus defeitos e qualidades; se pelo ousadíssimo Honoráveis bandidos, de Palmério Dória, no qual relata bastidores do clã. Ou pela resenha diária de jornais e sites que ficarão também para a memória popular.

Um estadista, nunca deixou de ser. Diplomático, atencioso com interlocutores, um intelectual literário elogiado pela crítica, perfil que o levou à Academia Brasileira de Letras. Teve papel fundamental na transição democrática com o fim do regime militar, numa Presidência que caiu no seu colo da noite para o dia com a morte de Tancredo Neves. Negociou bem com os militares para que não houvesse um retrocesso, conta quem com ele conviveu nos períodos conturbados. Teve seu mérito, não muito reconhecido até hoje. Mas um homem, que já foi – ou ainda é? – o mais poderoso do País por oito anos, avaliza isso.

Tudo vem de um episódio sigiloso ocorrido na eleição de 1989. Quando ainda media forças de intenção de votos com Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Collor foi chamado por nobres generais do Exército, numa reunião na qual o avisaram que queriam a vitória de Collor, porque, se Lula vencesse a eleição, os militares tomariam o Poder novamente. Collor nada falou e não fechou aliança alguma com os milicos.

Quando venceu a eleição, continuou a respeitá-los dentro dos protocolos democráticos. Mas foi Sarney quem segurou para valer a revolta da caserna à ocasião, e, mesmo presidente, sempre apoiou o sindicalista Lula em todas as demandas, dentro ou fora do Palácio. Daí depreende-se, para quem não sabia, a tamanha devoção do ex-presidente Lula ontem e hoje para Collor e Sarney – tão xingados por ele, mas faz parte do jogo do Poder.