STF, a nova paixão nacional
Leandro Mazzini
Provavelmente houve aquele frio na barriga a cada palavra do juridiquês que indicava o voto, ou o “uhhhh!” similar àquela bola na trave durante uma partida de futebol nos momentos – os mais amenos – em que os togados se digladiavam verbalmente. E, evidente, com o Brasil de olhos atentos na TV, cada um deles ganhou sua torcida ou ojeriza, pelo ideologismo peculiar a cada telespectador, e, por que não, pelo partidarismo, mas principalmente pela sede de justiça. E necessária.
O que não se pode negar é o ineditismo da situação, que surpreendeu até os ministros da Suprema Corte: nunca os cidadãos se interessaram tanto pela Justiça. O julgamento do Mensalão no STF o transformou, em todos os cantos do país, uma extensão elegante do futebol – tem juiz, arquibancada, intervalo, bola dividida, torcida (discreta, na corte, e escancarada, nas ruas), jogadas (verbais), xingamentos, provocações e, se o um dia o decoro cair, as cotoveladas e ministro correndo em torno do plenário gritando “Goool” ao concluir seu voto.
Popularmente, falou-se do julgamento em mesas de bar com a eloquência demagógica das discussões de futebol (o Brasil realmente muda a passos largos, eis uma comparação que não imaginávamos possível há tão pouco tempo, ou meses). Mas deixemos de lado as paixões, a ojeriza – por togados ou réus –, o partidarismo e o ideologismo de cada brasileiro que discutiu a ação penal 470. Fato é que, jogo jogado até aqui no âmbito judicial, o país não será mais o mesmo depois do consagrado caso acompanhado pela mídia.
As paixões tomaram a questão também na corte – vide o embate verbal entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Entretanto, por mais indícios que nós, agora com “notório saber jurídico via TV”, possamos apontar como políticos nas decisões, prevalece uma verdade incontestável: cada ministro votou conscientemente e com fortes argumentos que respaldaram suas decisões. Data venia, eis O Fato.
Com o demasiado apelo popular, surgiram dúvidas que pairam sobre o STF e a independência da corte. Balela. Como explicar, por exemplo, que Barbosa, o primeiro ministro indicado pelo então presidente Lula, em 2003, na era PT, tenha sido tão cruel com os mensaleiros? E o Luiz Fux, não “matou no peito”, conforme supostamente prometera a José Dirceu? Para citar dois casos, apenas.
Obviamente, votos de Lewandowski e José Dias Toffoli evidenciaram certo comedimento com os réus, mas não leniência. E os novatos Teori Zavascki e Luiz Roberto Barroso, se atuaram em compadrio com a presidente petista para salvar mensaleiros, acolhendo os embargos infringentes, conforme disse-me-disse das ruas, em nova fase terão oportunidade de mostrar a lisura de suas decisões, ou vão se enrolar.
Abre-se aqui um parêntese sobre o sistema brasileiro de nomeação de ministros para cortes superiores, uma decisão presidencial. É o mesmo usado pelos Estados Unidos, entre outras muitas nações. Se por esse sistema é natural que alguém possa suspeitar da complacência dos futuros ministros para com o(a) presidente, em julgamentos como o em voga, é de se supor que, se o Brasil lançasse mão do sistema do Peru ou da Guatemala, onde ministros são indicados por conselho de notáveis do Judiciário, também esse conselho poderia ser colocado em xeque sobre suas decisões. O contrapeso entre os poderes é uma arma do bem da democracia. Em suma, em qualquer corte, a questão é de foro íntimo. Cabe a cada ministro votar de acordo com suas convicções diante dos autos. E assim esperamos.
Na análise como um todo da ação penal 470, impossível falar em julgamento político, enquanto inegável a tendência teórica destes apontamentos, por duas questões: o envolvimento direto de personagens do poder, outrora mandatários ou ainda em cargos; e o acolhimento pela corte da teoria do domínio do fato para respaldar o prosseguimento do processo. Dois fatores que contribuíram fortemente para o calor do debate nacional, entre prós e contras. Mas que não se sobrepuseram ao muito bem investigado até aqui: o Mensalão existiu, e os réus tiveram suas parcelas de culpa, pequenas ou grandes.
Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, o renomado jurista Ives Gandra Martins, um notório contraditório de Dirceu, questionou a validade da teoria do domínio do fato. Expôs que o Supremo abre precedente e jurisprudência perigosos para outros casos – em outras palavras: então um CEO de uma empresa pode ser culpado e condenado se o estagiário cometer um crime, por ser subordinado a ele, que deveria saber do ocorrido?
Resultado do que pode se esperar nos próximos episódios da novela judicial: José Dirceu livra-se do crime de formação de quadrilha em novo julgamento. Nesse cenário, livra-se também do regime fechado e cumprirá pena no semiaberto. Para citar apenas o mais famoso caso.
Para os que clamam por justiça: todos eles vão para a cadeia, mesmo que só para dormir. Mas serão detentos. O estrago está feito: não há qualquer liberdade vindoura para eles que não seja acompanhada de uma palavra quase-sobrenome: corrupto.